Quando sou aquilo que não lembro que fui

Em um quarto com três paredes brancas e uma vermelha, nasceram alguns dos transbordamentos poéticos e nostálgicos desta obra. A artista mulher-samaúma-baleia, como ela própria se define, esteve envolvida na escavação de sua biografia e ancestralidade nos últimos seis anos, como tentativa de estabelecer sua singularidade no mundo. O rigor investigativo do gesto de coleta das memórias na qual se debruçou a artista, resultou em um inventário afetivo e na reconstituição do caminho que a família percorreu para longe do mar de sua infância, ‘em busca de melhores oportunidades e pertencimento’.

Essa busca de si a levou a uma jornada de crescimento e conhecimento de práticas antigas de cura, como o tambor, a medicina do xale e o Reiki e ao encontro com mestres, como Bené Fonteles - guardião da floresta e antigas tradições, quando participou de sua residência artística, onde encontrou com sua essência baleia e descobriu sua voz.

A samaúma - a grande árvore, a mãe da humanidade - permanece em risco de extinção pela voracidade pragmática dos homens, nessa batalha entre materialismo e espiritualidade evidenciada nesses tempos. Como afirmou o escultor Joseph Beuys em seu “Pensar Cristo”, as árvores são mais inteligentes que as pessoas por se saberem essencialmente privadas de seus direitos. Segundo ele, elas se alimentam de um certo tônus do sofrimento do mundo que absorvem por suas enormes copas, detendo um conhecimento ancestral sobre a humanidade.

A transmissão de conhecimento ancestral surge nos bordados ensinados por sua mãe e que, em sua adolescência, se tornaram uma forma de contornar as dificuldades financeiras da família. A artista resgata o ato de bordar como ‘possibilidade de se nutrir e se maternar, contando sua história em cada ponto no tecido’. Mortes e renascimentos cotidianos, tempo e memória, solidão e amor, corpo e identidade, feminino e ancestralidade, devaneio e sonho, cura e transcendência do lugar comum pelo ritual formam a tessitura de sua obra.

Seu espólio de memórias aquosas traz fotografias e cartas de amor de seus pais, toda sorte de miudezas e uma pequena coleção de sua infância que buscava eternizar o momento perfeito em que corria na direção do mar para recolher conchas.

“Colocamos a consciência no fundo das coisas pelo fato que atribuímos a ela um tempo que dura.” Henri Bergson

As crianças costumam guardar tesouros de lembranças, talvez porque pressintam o transitório do tempo e a fugacidade das memórias - sedimento tênue que se deposita nas nossas profundezas inconscientes. Essa sabedoria em estado bruto se acerca da natureza da vida-morte-vida, buscando reter sensações, relações e experiências nesses objetos-relíquias que narram suas histórias.

A artista, em um gesto estético e ritualístico, busca restaurar a relação com os objetos e reintegrar as experiências e o registra nos autorretratos. Descansando sobre a pele de seu colo, suas presenças podem atravessá-la e transmitir, do sangue aos ossos, o espírito. Portanto, não são object trouvé acidentais e sim arautos, instrumentos, talismãs que carregam valor per si. E que trazem essa “película impalpável que se estende sobre as coisas” (M.Ponty) para além da retina, revelando que o mar está na concha assim como o Ser está em nós.

Suas memórias têm gosto de sal e trouxeram o som de um chamamento que a assombrava: esse não-saber de si vinha carregado de saudade de um lugar-nenhum até então desconhecido. ‘Vinte poucos anos e o mar’ são o registro de um breve reencontro quando a artista, de passagem por Vitória-ES, atendeu a este chamado em uma manhã em que respondeu ao desejo de caminhar no mar e registrou esse momento com seu celular. As fotografias e autorretratos são testemunhos dos ritos de um corpo que, se sabendo essencialmente um lugar de passagem, busca abrir frestas no cotidiano e instaurar outras paisagens.

Em a Água e os Sonhos, Bachelard afirma que todas as lutas humanas são simbolizadas pela brincadeira infantil da criança que desafia o Oceano, perseguindo e fugindo das ondas. O mar é símbolo de vida e abundância, mas também de morte e dissolução em águas profundas.

"O ser devotado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente." (Bachelard)

O vídeo performance ‘Eu, baleia’ é o registro do reencontro sagrado entre criança, mulher e Oceano. Entrar no mar, segundo Bachelard, é uma “iniciação perigosa, um salto no desconhecido”. A artista não se furta ao desafio de compreender o preço da profundidade, empreende uma dança ritualística e seduz o mar, orquestrando o movimento das ondas com a coreografia de suas mãos. A dança sacramenta o encontro, a entrega e o reconhecimento de serem um. O canto é o reconhecimento e afirmação de sua própria voz no mundo. E o retorno se dá com a constatação de que carrega em si esse “impulso inesgotável de vida”.

Como poetizou Rumi: somos o oceano em uma gota. A jornada essencial e heróica em busca de respostas para as questões existenciais que nos assombram é o salto sobre o abismo que se dá para dentro enquanto reencontro essencial. E a arte se apresenta como território fértil onde elas germinam.

‘Quantas vezes você morre por dia?’, indaga a artista para amigos e interlocutores, tentando descobrir como ela mesma, sendo uma mulher-samaúma-baleia afastada de seu habitat, pode aprender a viver em um mundo seco e árido em que todos os dias alguém ateia fogo, a como ‘fincar a cauda na terra e as nadadeiras no céu’ com seu corpo de 30 metros.

Sua obra suscita em nós o assombro diante dos mistérios insondáveis de nós e do mundo, nos traz a consciência da transitoriedade, nos convoca a desaceleração e a reflexão sobre nossa própria trajetória, a refazer percursos e ressignificar nossas experiências. A artista nos inspira a oferecer um epitáfio cotidiano a tudo o que diariamente morre em nós e, com isso, celebrar e cultivar nova vida.

Malu Aguiar – Esquizoanalista, Artista Visual e Terapeuta Integrativa

OBS: Texto curatorial da mostra Quando sou aquilo que não lembro que fui da artista Camila Fontenele, com curadoria de Allan Yumizawa - Sesc Sorocaba, 2019

https://www.camilafontenele.com/eu-baleia

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