Após um ano de quarentena, parece que estamos no filme “O Feitiço do Tempo”, vivendo o “dia da marmota”, repetindo o março de 2020, com a diferença de mais de 10 milhões de caso e quase 300 mil mortes por Covid-19 no Brasil, além da esperança cansada pela vacina.
Os últimos meses têm sido particularmente desafiadores. Embora eu tenha o privilégio de não ter havido nenhum caso na minha família e minha mãe com 90 anos recém completados já ter recebido as duas doses da vacina, venho lidando quase diariamente com a morte, em iminência ou fato.
Além de estar há um ano lidando com a preocupação das pessoas com a doença, no último mês venho consolando pessoas em suas perdas, particularmente netas em seu luto por suas avós, o que me levou a essa reflexão que aqui compartilho. Elas se sentem inconformadas não pela morte em si, que sabemos que nos espreita e vai ficando cada vez mais próxima à medida que envelhecemos. Seu inconformismo é justificado pelas circunstâncias absurdas que estamos vivendo, pelo descaso do (des)governo genocida ao qual nos submetemos e pelo descuido de pessoas próximas a elas, que já não se deslocavam tanto devido a idade avançada e suas enfermidades.
A raiz dessa negligência nós já sabemos onde está entranhada. Não vou somar a minha às tantas vozes de revolta, não é esse o meu papel. Embora seja uma órfã da ditadura e sinta em minhas veias essa potência circulando, algumas vezes como uma espécie de lava que vai me incendiando por dentro, faço do autocuidado e da autorregulação minhas maiores armas e do amor a minha linguagem e ato. Não quero falar sobre a destrutividade do ódio deles e sim sobre a edificação do nosso amor.
Em tempos sombrios, violentos e de exceção, o amor e a imaginação ativa salvam a mente de sucumbir ao sofrimento.
Algumas dessas mulheres morreram de um modo em que haviam dito que não gostariam que acontecesse: sozinhas em hospitais. E é muito triste que alguém não possa escolher o modo em que deseja partir desse mundo. Essa é uma faceta muito cruel dos tempos que estamos vivendo, mas a pior é morrer sem qualquer assistência, o que pode começar a acontecer em larga escala, caso nós não sejamos conscientes e sigamos os protocolos de segurança.
O apelo para que as pessoas só saiam de casa somente o necessário, mantendo o distanciamento e usando máscara nunca parece ser suficiente.
Essas mulheres eram aquelas que admoestaram carinhosamente gerações de filhas e de netas para que se cuidassem. Avós são uma espécie de patrimônio cultural e familiar. Elas são a representação da transmissão dos saberes ancestrais e são o testemunho de todas as mudanças ocorridas nas últimas décadas ou quase um século.
Suas netas falam delas com muito carinho e admiração e concluí que elas tinham em comum a força, a alegria e a sabedoria. As mulheres dessas gerações sofreram muito, foram privadas de sua liberdade de escolha e silenciadas, muitas viveram em casamentos com homens difíceis, quando não intolerantes e violentos. E mesmo assim, pareciam manter acesas a chama de amor e do entusiasmo pela vida.
Um fogo ardente faz esplendor e brilho de tudo aquilo que é jogado nele.
— Marco Aurélio
Eu gostaria de encerrar esse ciclo de textos do mês de março sobre as mulheres, homenageando essas que foram o esteio de muitas famílias e que deixaram tantas lições de vida para suas filhas e netas, fazendo um exercício de imaginação:
Independente de crenças sobre a “vida após a morte”, gosto de pensar que elas foram recebidas “do outro lado” cercadas de todo amor e luz que emanaram enquanto estavam presentes nesse mundo.
Mesmo que tenham partido, elas não deixam de existir, mas passam a habitar dentro de nós. Que possamos honrar sua sabedoria e suas presenças sendo nós mesmas faróis de amor e de luz.