Um tema complexo e necessário é a identidade, conceito que vai aparecer na filosofia, na psicanálise e psicologia, na sociologia e na política, sendo alvo de muita controvérsia. Por definição, a identidade se refere à qualidade daquilo que é idêntico a si mesmo. Ela é o reconhecimento de que o indivíduo é ele próprio, “ele mesmo o mesmo”.
A identidade tem seus estatutos individual e coletivo e envolve diferentes aspectos como o biológico, psicológico e social. Ela pode se apresentar como identidade corporal, sexual, de gênero, cultural, religiosa, entre outras.
A identidade pode ser vista como o conjunto de uma unidade psicológica (self) mais os atributos que identificam, diferenciam e singularizam o indivíduo de modo que se torne único em si mesmo.
Segundo Jorge Ponciano, self é uma estrutura em processo. Essa estrutura vai se edificando ao longo da existência e nunca se encerra.
Nada no humano está pronto, tudo é movimento, evento, acontecimento, provisoriedade, impermanência e circularidade, que são as notas da evolução.
Entendendo que o self é anterior a identidade, poderíamos pensar a identidade como processo e não estrutura? Pensar identidades como fluxos?
Para o pensamento ocidental, a identidade aparece com caráter de unidade. “Mas essa unidade não é absolutamente o insípido vazio daquilo que, em si mesmo desprovido de relações, persiste na monótona uniformidade.”, afirma Heidegger em Identidade e Diferença. “A identidade reside na relação ‘com’, a todo momento, em qualquer relação, somos interpelados pela identidade”.
Para a psicologia, a identidade começa a se moldar na relação do corpo do bebê com o mundo em seu entorno. Nesses encontros e experimentações, na satisfação de suas necessidades e desejos pelo outro que dele cuida e na posterior relação com o mundo, o processo de individuação vai começando a se formar. O que determina esse percurso é a qualidade desses encontros, espelhamentos, atravessamentos, rupturas e o senso de pertencimento ou exclusão.
O senso de pertencimento ou sentimento de exclusão estão na base da construção da identidade tanto pessoal quanto em seu aspecto social e coletivo. O senso de pertencer é determinado a partir da comunidade, ou seja, de uma comum unidade. Pertencer significa: se sentir integrado, inserido na ordem de uma comunidade.
Por isso, falamos em uma comunidade LGBTQIA+, onde cada letra da sigla representa uma identidade coletiva que, a partir do pertencer, funda uma comunidade que lhe é própria, seja no contexto de gênero ou de sexualidade. Essa comunidade maior é um guarda-chuva que abarca toda existência que foge a visão binária e heteronormativa. Muitas pessoas se identificam com mais de uma das siglas, pertencendo a mais de uma das comunidades, sendo fluxos identitários nesses construtos.
Dito isso, quero convidar você a refletir sobre identidade e diferença. Se você puder pensar na sua própria existência, em que momento e a partir de que sensação ou experiência você definiu ser parte de um gênero (o conjunto de significados, expressão social e comportamentos)? Em que momento você definiu sua orientação sexual? O que construiu seus afetos e seus modos de existir e de se relacionar?
Os gêneros binários (homem/mulher, masculino/feminino) são uma construção social e política que se apoia em uma diferença biológica para regulação dos corpos dentro de um contexto de normatividade. Sendo assim, poder-se-ia dizer que existem tantos gêneros quanto existem pessoas, porque cada um tem uma experiência única em seu senso de existir como um corpo de experimentação e não há como saber como uma pessoa se sente sobre si mesma a não ser pelo seu próprio relato de si e por sua expressão.
Pense na sua identidade corporal e em sua expressão de gênero, em que símbolos ou seres elas se espelham?
Imagine se na sua infância não tivesse havido essa distinção binária de gênero a partir das características biológicas dos corpos, nem vestuário, comportamentos, brinquedos e brincadeiras e papéis sociais pré-definidos, como você pensa que teria evoluído em sua subjetividade e expressão no mundo?
Afinal, o que é a mulher, o que é o homem? E o que são outros gêneros entre estes pólos inventados cultural e politicamente definidos como norma? O que significa ser “feminina” ou “masculino”, vestir-se ou comportar-se como uma mulher ou como um homem, senão um conjunto de signos performativos mais ou menos reconhecíveis, evidentes ou sutis que, à medida que vão sendo apropriados por um corpo e performados socialmente, vão também se validando e reforçando a lógica do binarismo, num eterno retorno?
E, por isso mesmo, qualquer existência que fuja a essa normatividade binária - como pessoas transgêneras ou queers, dentro dessa miríade de diversidades de existência, experiência e performatividade - é a base de uma revolução que já está em curso.
Existir, questionar, resistir, desejar, performar, ser, trans-formar.
Essa é a grande oportunidade de aprender sobre nossa própria experiência existencial diante dessa diversidade de modos de existir que está em movimento, acontecimento e circularidade. A trans-revolução e a revolução queer não serão contidas ou silenciadas e ninguém voltará para o armário da normatividade ou nem viverá sua existência em cativeiro, acredite. Ainda temos muito barulho para fazer e muitos direitos a conquistar em reconhecimento, equidade, visibilidade, representatividade, nada menos do que isso. “Resistimos no dia a dia para poder chegar o dia em que prevaleça respeito, igualdade e esperança.”
Para quem dela não participa, faço das palavras do Quebrada Queer, as minhas:
Aceita, atura ou surta.