Quando o final do ano chega, é comum esbarrarmos em pedras com o nome de fracasso, frustração, exaustão e na sensação de não termos feito o suficiente para cumprir as metas que estabelecemos no ano anterior.
Essa época traz uma carga simbólica de finalização de ciclos e de recomeços e podemos até nos apoiar em uma certa frequência de renovação. Isso pode ser bastante favorável. Mas se esquecermos de contabilizar os desafios que enfrentamos ao longo do ano e só focarmos nos erros que cometemos, acabamos por não celebrar o fato de termos superado inúmeros obstáculos.
Estamos vivendo tempos complexos e esse ano teve uma carga ainda maior com o cenário de guerra e de urgência climática. Se você não vive em uma caverna e é uma pessoa sensível, é possível que isso tenha lhe atravessado e causado ainda mais pressão interna. E o resultado de estar constantemente sob a influência de notícias, do excesso de informações e da cobrança de que “tem de fazer o seu melhor”, é o aumento dos níveis de estresse e ansiedade e a ameaça de depressão.
E as redes sociais e influencers estão aí para gerar ainda mais pressão sobre nossas cabeças cansadas, com fórmulas prontas e superficiais de sucesso, produtividade, gerenciamento de tempo e enriquecimento em uma conta que nunca fecha. Afinal, qual é a sua ideia sobre sucesso em um mundo em franca crise?
Eu confesso que para mim sucesso tem sido chegar ao final de um dia com a sensação de ter feito um bom trabalho de acolhimento das minhas clientes, praticado exercícios, me alimentado bem, ter aberto pequenos respiros para leitura e descanso e fruir da presença de meu companheiro por algumas horas leves e alegres e de uma noite de sono reparadora.
Sim, eu sei que no sistema que vivemos e na era da produtividade, isso parece insuficiente. Eu poderia vir aqui como muitos influencers e dizer que acordo as 5h da manhã, pratico Yoga, faço meditação (o que acontece, mas não todos os dias) e que para além do trabalho afetivo de escuta que realizo diariamente e o estudo necessário para isso, realizo muito além. Eu gostaria de vir aqui compartilhar que estou contribuindo com muito mais, com postagens, livros, podcasts, jornadas, meditações. Mas aprendi a respeitar meus limites e os limites do tempo linear, para não acabar produzindo um burnout ou entregando mal minha presença na klínica.
Afinal, meu trabalho promove o autocuidado e a manutenção da saúde mental, afirmando a importância de aprender a desacelerar, a descansar e a buscar alegria nas pequenas coisas. Não seria ético vender uma ideia nas redes sociais e praticar o oposto nos bastidores, como muitas pessoas fazem atualmente nessa área de autocuidado e saúde mental, dando dicas para controle de ansiedade quando elas próprias têm de fazer uso de ansiolíticos ou entregando frases de motivação esvaziadas, quando estão bem apoiadas por um bom comprimido de antidepressivo por dia.
Eu sei que no capitalismo ninguém vai dar um tapinha nas nossas costas e nos dizer: “tudo bem, você fez o melhor que pode, guerreira, agora descanse”. Afinal, o mérito está em produzir cada vez mais capital, seja para você ou seja para outra pessoa (para ter seu quinhão e sobreviver ou conquistar autonomia e segurança financeira). Mas essas ideias equivocadas de sucesso e produtividade vendidas nas redes sociais e que só servem à manutenção do capitalismo e da concentração de renda às custas da saúde física e mental dos trabalhadores (e que muitos influencers promovem), definitivamente só produzem mais transtornos mentais.
Seria ingênuo da minha parte pensar que em um mundo que clama por produtividade a qualquer custo, basta realizar um bom trabalho e cuidar de si para que considerem que você está fazendo o seu melhor ou, como dizem os influencers e coaches motivacionais: está na sua melhor versão.
Mas afinal, qual é a melhor versão de nós que temos de nos esforçar tanto para alcançar? O que tanto temos a consertar em nossas vidas, nos nossos corpos e rostos? E por que pensamos que temos de estar sempre no controle, planejando, realizando, produzindo, consumindo?
Nesses tempos em que coaches e influencers de redes sociais promovem estilos de vida que estão na moda e que, muitas vezes, nem eles próprios praticam, em uma espécie de esquema de pirâmide em que vendem suas imagens e recortes editados de seus cotidianos para convencer a audiência a comprar produtos, é preciso atenção e astúcia.
Recentemente tivemos duas situações muito interessantes nesse tema, apresentadas no mesmo episódio do programa Fantástico da Rede Globo, no dia 17 de dezembro. O programa revelou o esquema fraudulento da plataforma Blaze e do jogo do aviãozinho, que já vinha na mira da polícia por fornecer um esquema de jogos de aposta, após alguns usuários reclamarem de não receberem valores elevados conquistados na plataforma. Por trás do grande sucesso da plataforma estavam alguns influencers que, por meio da credibilidade conquistada, vinham divulgando a Blaze e outras plataformas de apostas, iludindo seus seguidores com vídeos fakes de ganhos financeiros. Não é à toa que os jogos de azar são proibidos no país, porque produzem vício, induzindo o apostador a gastar somas cada vez mais altas para compensar suas perdas, gerando dívidas, crises de ansiedade e depressão e impactando sua vida e a de sua família. É preciso dizer que, após engordarem suas contas bancárias, nenhum deles assumiu responsabilidade pelo dano causado na vida das pessoas prejudicadas por suas estratégias desonestas de enriquecimento fácil.
A outra denúncia se refere a investigação do envolvimento do fisiculturista e influencer fitness Renato Cariani na comercialização de uma grande quantidade de produtos químicos utilizados na fabricação de drogas, que utilizava o nome de grandes empresas para encobrir o crime e já havia sido citado no depoimento de um traficante em 2016. Cariani tem uma base de mais de sete milhões de seguidores nas redes sociais e em frente da câmera do celular, promovia a venda de whey protein e creatina, suplementos usados na prática de exercícios físicos, mas por detrás vendia solventes e substâncias em pó para a produção de enormes quantidades de cocaína e crack. Em suas redes sociais, fala sobre vida saudável, produtividade e sucesso, dando conselhos rasos como qualquer coach motivacional. Fora delas, está sendo indiciado por associação para o tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e tráfico equiparado, atividades ilegais de onde derivam os milhões que ostenta.
O que esses dois casos têm em comum? O fato de se tratar de influencers e das ideias promovidas por eles de escalonamento financeiro, seja por meio de apostas ou da fórmula “acorde cedo, malhe, poste diariamente e trabalhe enquanto eles dormem”, prato cheio para a manutenção de um sistema exploratório. As redes sociais são a ferramenta perfeita para a manutenção do capital dos acionistas dessas plataformas e das grandes empresas: não é mais preciso explorar o trabalho das pessoas, porque elas já fazem o duplo vínculo auto exploratório de alimentar as redes com conteúdo para o qual não são pagas, em geral em uma segunda jornada de trabalho não remunerada e de consumir esse mesmo conteúdo, pagando a conta com seu tempo de vida e saúde mental.
Eu tenho buscado me equilibrar precariamente para não ser capturada por essa lógica perversa, me beneficiando dos conteúdos que me interessam sem excessos e produzindo conteúdo somente quando tenho algo relevante ou que desejo compartilhar em um ritmo mais suave que do slow content. Tenho buscado aceitar que faço parte de um sistema e que, mesmo que não concorde com ele, preciso participar de algum modo. Afinal, o capitalismo já me capturou desde meu nascimento e provavelmente não viverei para assistir a implementação de outro sistema.
A Esquizoanálise, a filosofia nômade criada por Giles Deleuze e Félix Guatarri, minha área de estudos e prática clínica, faz uma crítica ao capitalismo e aos modos sedentários e ressentidos de existência pautados nos afetos tristes e impotentes. Essa filosofia questiona a ideia convencional de sucesso e fracasso, nos instigando a escapar dessa captura do nosso desejo intensivo que é diminuído pelos papéis sociais, pela necessidade de atingir um ideal e de atender às expectativas exteriores. Eu tenho aplicado esses conceitos na minha abordagem clínica sobre o consumo de conteúdos nas redes sociais e da prática de seguir pessoas. Quem sabe de si e preserva suas forças intensivas de vida e entende aquelas que as atravessam e as potencializam ou despontencializam, não sente necessidade de ser guiado como uma ovelha.
Outro conceito que aparece na klínica é o de “rostidade”, que aponta que há algo que antecede a nossa própria existência no mundo. O rosto, que vem antes e que determina nossa passagem ou o impedimento dessa nos interstícios do poder: a raça, o gênero, a orientação sexual, a classe social ou econômica, a profissão, a idade, características físicas etc. A rostificação é o modo de organizar e controlar uma multiplicidade a partir de um único modelo central e, desse modo, criar hierarquia, gerar exclusão e o desejo de se parecer com esse modelo. Essa é uma das bases do modo consumista que tem sido fortemente validado e incentivado nas redes sociais pelos tais influencers e que tem tido um impacto brutal no meio ambiente.
A partir do conceito de “rostidade”, a esquizoanálise propõe o exercício de “desrostificação". Este processo envolve raspar as camadas até desfazer o rosto desse “eu sou” isso ou aquilo, “eu preciso” disso e daquilo, “eu faço” assim ou assado, como um exercício de liberdade e de afirmação da multiplicidade de percursos que podemos experimentar. Libertar a mente e liberar os fluxos.
Eu gosto muito de somar a esses conceitos um aspecto da filosofia japonesa, o Ensō (円相) cujo símbolo fez parte da logomarca do Percurso por muitos anos. O Ensō é uma representação visual do círculo, desenhado em uma pincelada única e livre, simbolizando a necessidade de aceitação dos erros e imperfeições da vida. Na prática da grafia do Ensō, aprendemos que a beleza está na simplicidade, na aceitação do inacabado, na celebração dos traços que escapam ao nosso controle.
O Ensō encapsula a beleza dos momentos imperfeitos em um único movimento que não pode ser refeito.
E a filosofia do Le Parkour (O Percurso) que deu nome à meu projeto, também versa sobre a relação com o erro enquanto fonte de aprendizado e desenvolvimento e com a singularidade. Afinal, cada corpo tem seu próprio ritmo, força, flexibilidade, modo de adaptação e desejo. No parkour, cada obstáculo superado, cada salto arriscado é uma oportunidade de evolução. Os praticantes entendem o erro não como fracasso, mas sim como um degrau a mais na escada do aprimoramento. E esse refinamento não está em comparação com nada além do que pode esse corpo, porque não é uma prática competitiva. Essa mentalidade nos convida a abraçar nossa singularidade e os desafios com coragem, sem temer as quedas, pois estas fazem parte da jornada.
Ao entrelaçar esses três conceitos, convido você a refletir sobre o ano que passou fora dessa fórmula de sucesso, produtividade e enriquecimento dos influencers e coaches das redes sociais, muitos dos quais não tem ideia do que é estar na sua pele e enfrentar os desafios que você enfrenta. Veja cada curva do círculo, cada traço incompleto, cada salto que você deu, cada queda que sofreu como a representação do momento em que ousou, errou, aprendeu e cresceu. Ou parou.
Do seu modo, você fez a melhor dança possível, com as pausas de imobilidade que a tornam mais bela.
A filosofia nômade, o Ensō e o Parkour podem inspirar você a reconhecer sua singularidade, abraçar seus erros, respeitar seus limites e seguir seu percurso com prudência e coragem, exercitando a astúcia e praticando a arte da esquiva, investindo em afetos alegres e bons encontros para produzir acontecimentos potentes. Afinal, os erros, desafios e obstáculos são parte de seu caminho e de sua narrativa pessoal. Somados ao desejo que te move, é o que confere singularidade à sua vida, que torna você quem é.
Neste final de ano, que nós possamos celebrar não as conquistas e vitórias, mas cada um dos círculos imperfeitos que desenhamos em nossas vidas e cada queda que sofremos ao desenhar o risco no caminho. Que cada traço se configure nas linhas de fuga desse sistema que nos quer máquinas de produzir e consumir.
Abraços de elevar!