Você já pensou sobre a diferença entre limite e limitação?
O limite é uma fronteira, algumas vezes necessária para não nos perdemos na duração dos acontecimentos ou na intensidade dos encontros. Limitação é uma restrição a um limite que nem sempre é necessário ou que muitas vezes é imposto pela moral, cultura ou meio que fazemos parte.
Esta frase do Richard Bach era meu lema na minha adolescência: “valorize suas limitações e por certo não se livrará delas”. Essa sentença teve um efeito axiomático sobre mim e norteou minhas escolhas e ações. Isso pode ter me ajudado em alguns momentos a ultrapassar limites e superar obstáculos. Em outros, pode ter me levado a nadar contra a corrente e me jogar contra os rochedos, com mais ousadia que prudência, o que é próprio de pessoas jovens.
Viver a vida com uma perfeita combinação de ousadia e prudência poderia ser a fórmula perfeita, se eu acreditasse em perfeição ou em fórmulas.
O Percurso nasceu há 15 anos, a partir dessas reflexões sobre como superar limites com ousadia e prudência, desafiando as próprias limitações autoimpostas de forma gradual e a partir do autoconhecimento e não de fórmulas prontas.
Em 2005, eu estava trabalhando com a preparação de adolescentes da escola Senai para a participação nas Olimpiadas do Conhecimento e tinha entrado em contato com o Parkour nos espetáculos de dança do coreógrafo Diogo Granato, logo que ele incorporou esta arte ao seu repertório de movimentos e estética de sua obra.
O Parkour é a arte do deslocamento da forma mais eficiente possível, através de movimentos estéticos, buscando constantemente a adaptação ao ambiente para ultrapassar obstáculos. O Parkour não é um esporte e sim uma disciplina autorreferencial e não competitiva, que consiste em uma pessoa se deslocando através de corridas, escaladas e saltos.
O Parkour privilegia o movimento e a constante reinvenção do meio que nos circunda, resgatando o aspecto de imprevisibilidade e forjando os desafios que os ambientes naturais nos oferecem.
Os locais urbanos são construídos com rotas já traçadas, limites impostos e normas de deslocamento que restringem o movimento, produzindo sedentarismo. O Parkour reinventa os usos dos objetos urbanos e cria novas funções para eles em um processo dinâmico e criativo.
Os jovens criadores do Parkour, orquestrados pelo bombeiro francês David Belle, provavelmente só estavam entediados. A partir desse desafio do meio e da quebra das normas e do uso do espaço, na brincadeira de criar linhas de fuga e arte do escape, nasceu o Parkour: uma bela combinação de ousadia e prudência.
Os praticantes do Parkour, chamados traceurs, precisam ser incrivelmente persistentes no desenvolvimento de habilidades e na superação autoconsciente e responsável dos limites do corpo.
A vida pede movimento porque é vontade de potência buscando a criação de mais vida e a mudança é sua única certeza.
O Parkour é uma arte, uma disciplina e uma prática que privilegia o movimento e inspira a ação, desenvolvendo as mesmas habilidades que temos de aprimorar para criarmos uma vida mais significativa a partir do desenvolvimento da nossa própria potência e criatividade.
O Parkour nos ensina que, para vencer desafios é necessário mais do que enfrentar o medo, é preciso conhecer nossos limites para superá-los com prudência, força, coragem e autoconfiança.
A filosofia do Parkour reconhece que viver é correr riscos e não evitar os perigos e nos manter em ilhas de conforto a qualquer custo, nos escondendo atrás de uma falsa ideia de segurança e escamoteando a experiência direta do mundo.
A filosofia por trás dessa disciplina me inspirou a criar o Percurso.
O Percurso se destaca pela constante atualização de si e apropriação do corpo e da sua história, pelo tempo que se investe no desenvolvimento das habilidades necessárias para atingir o estado da arte e por privilegiar a trajetória e não o destino ou resultado.
Em um mundo em constante transformação, é necessário desenvolver a habilidade de prontidão e a autodeterminação. Desse modo, podemos encontrar a resposta para o esgotamento de nossa energia criativa nas malhas desse cotidiano cada vez mais mediado pela tecnologia e resgatar nosso potencial criativo.
Parafraseando o escultor alemão Joseph Beuys, atualmente nós sofremos por estarmos privades de dar forma ao mundo e criar. Então, quando ele afirmou que “toda pessoa é um artista”, não quis dizer que todos temos habilidades de desenhar, esculpir ou pintar e sim inspirar a fazermos da nossa vida a nossa obra de arte, criando uma existência ética e estética.
Partindo de onde nos encontramos, fazer o melhor que podemos, a partir da nossa autoconsciência, empregando nossa energia criativa na busca de soluções para as nossas questões e para os problemas do mundo, ampliando nossa liberdade.
Assim como Beuys, eu acredito que “pensar é esculpir”. Ele atribuía ao pensamento a capacidade plástica, afirmando que a transformação que o cérebro sofre no ato de pensar já é por si uma escultura e constitui uma obra de arte.
Isso está compatível com o conceito de neuroplasticidade, onde o ambiente circundante vai apresentando desafios e experiências, exigindo de nós a adaptação de resposta. Do mesmo modo, nossos comportamentos moldam nosso cérebro, criando caminhos neurais e afetando todo o processo sináptico.
A neuroplasticidade é também afetada por nossas escolhas cotidianas, como a qualidade da alimentação, exercícios físicos e desafios mentais, uso da tecnologia, qualidade da nossa vida social e emocional e o controle de stress.
Eu acrescento que o pensamento dirigido nos livra dessa hipnose coletiva que nos impõe uma visão de mundo onde predomina a escassez e a competição e onde nos tornamos produtos. Nesse sentido, liberdade é saber escolher a qualidade das frequências onde conectamos nosso pensamento. A prática do pensamento consciente nos livra de cairmos na rede como seguidores e consumidores e de viver uma existência de imitação (mimesis).
Pelo autoconhecimento nos conectamos com nossa própria natureza e com a natureza em nós. E pela observação da natureza, deparamos com a abundância e a colaboração presentes no mundo.
Viver uma existência poética e criativa (poiesis) representa o resgate de nossa capacidade de dar forma ao mundo e criar conforme nossas visões, valores e propósito, em colaboração e privilegiando a diversidade dos encontros e trocas. Esse é o verdadeiro significado de co-criação ou criação de realidades. Qualquer outra acepção é passageira.
Para criar uma vida plena é necessário ter consciência dos riscos, assumi-los e vencê-los, desenvolvendo a atenção focalizada. Você pode fluir nos encontros e acontecimentos ou estabelecer metas. As metas podem mudar durante seu percurso, mas certamente tendo um objetivo em mente, você sabe que direção seguir e quais ações empreender.
Para conquistar autonomia em qualquer área de sua vida, é importante se desafiar, estar sempre em movimento e aprendizado. É preciso desenvolver a flexibilidade, a capacidade de adaptação tanto quanto praticar o autocuidado, buscando o equilíbrio emocional.
Traçar um percurso é empreender uma jornada pessoal de encontro consigo e apropriação de sua biografia, criando sua própria linguagem para escrever os próximos capítulos de sua história.
O Percurso não se apresenta como um método e sim como um processo de acompanhamento dinâmico e sistêmico que vai sendo tecido encontro a encontro, tomando como base os desafios do caminho individual. O Percurso é uma abordagem orgânica que propõe o experimento e apropriação de si e de sua vida, a auto escavação para descobrir os tesouros ocultos e a atualização das experiências. Investigar o passado para ampliar o olhar sobre os acontecimentos, se mantendo em um estado de presença e engendrando o futuro que quer viver.
Em um mundo em constante mudança e em tempos complexos como estamos vivendo, traçar um percurso auxilia a criar perspectivas e produzir novas realidades.
O Percurso é dirigido a pessoas inquietas e que sabem que a mudança que querem ver no mundo começa dentro delas mesmas. Pessoas que desejam empregar toda a sua potência para criar a vida como obra de arte.
Quem está habilitado a criar? Todo aquele que conhece a linguagem do mundo, ou seja, você e eu.
— J. Beuys