Quando eu era criança, eu tinha medo de escuro. O que havia no escuro que me provocava medo? Sendo míope e com uma imaginação ativa, qualquer silhueta na sombra, tomava ares monstruosos e ameaçadores e não havia lógica que desse alento aquela perturbação: “fantasmas não existem, não tem como alguém ter entrado no quarto” – nada que era dito aliviaria o medo a não ser acender as luzes. E estava eu ali fazendo o inventário dos objetos no quarto: o mancebo com as roupas penduradas não era um homem com capa, o abajur sobre a mesa de cabeceira não era um bicho prestes a saltar sobre mim. Mas ao apagar novamente as luzes, o medo voltava a criar personagens sombrios que habitavam meu interior.
Diziam que crianças sensitivas é que têm medo do escuro, mas não são todas as crianças sensitivas? E quem poderia afirmar que toda criança tem medo do escuro ou mesmo que maior parte das pessoas adultas tem medo do desconhecido?
Mas será que crianças são capazes de detectar ameaças reais? Então porque temos de ensiná-las conceitos básicos como “o fogo queima”, “a tomada dá choque” ou sobre os perigos no entorno como: pessoas estranhas podem ser predadoras em potencial, precisa olhar antes de atravessar a rua para não ser atropelada, você pode cair se subir em um muro alto.
Crianças muito pequenas são como os pequenos lobos que, para garantir sua sobrevivência, as mães-lobas tem de ameaçar, rosnar, assustar e empurrar para que apreendam a noção de território e ameaças letais, já que ainda são muito inexperientes para distinguir os predadores.
Isso me faz pensar sobre medos reais, medos imaginários e medos aprendidos.
Sim, nós podemos ler o medo como o resultado fisiológico da percepção da realidade, você já deve estar cansando de saber que aquilo que o nosso sistema lê como ameaça dispara adrenalina e prepara o nosso corpo para a fuga. E que isso garantiu a sobrevivência da espécie.
E ainda se quiser ter uma imagem indistinta disso e entender o medo como um mecanismo de defesa natural, basta observar um animal-presa fugindo de outro animal-caçador. A diferença é que os animais seguem o instinto e ao ser capturado, se consegue escapar, segue por um período com os batimentos cardíacos acelerados, mas se recupera em poucos minutos. Não sei se carrega memórias do evento como uma espécie de registro que o tornará mais alerta e capaz de sobreviver, mas não como um trauma, como vemos em animais domésticos maltratados. E aqui gostaria de salientar que há uma grande diferença entre a potência e autonomia de um animal selvagem e o condicionamento e dependência de um animal domesticado.
Nós, ao contrário dos animais, pouco podemos contar com nossos instintos que já estão semiadormecidos pela nossa própria domesticação, mas ao chegarmos à idade adulta, já contabilizamos uma coleção de pequenos e grandes traumas que ao invés de nos tornarem mais alertas e fortes, nos tornam temerosos e impotentes.
Bem, a essa altura você deve se lembrar que toda pessoa viva experimenta o medo e que ele faz parte de nossa existência. Mas quero convidar-lhe a uma reflexão sobre quais dos seus medos são de ameaças reais, quais são de ameaças imaginárias e quais você aprendeu a alimentar ao longo de sua vida, como um lobo esfaimado.
Acenda a luz da sua autoconsciência e revele seus fantasmas interiores. Talvez eles sejam somente reflexos de suas crenças que limitam sua potência.
Eu ainda sinto certo medo do escuro. Mas aprendi a penetrar nele e permitir que ele me abrace suavemente.