Semana passada eu falei sobre a autoestima e como ela se estrutura a partir de uma base construída na infância. Os primeiros grupos sociais aos quais pertencemos, como a família, a escola e até mesmo a igreja são, em grande parte, responsáveis pela construção de nossa identidade e de nossa autoestima.
A família deveria ser o alicerce de nossas vidas, representando amor, segurança, afeto, respeito e apoio. Infelizmente não é assim para todas as pessoas. Aquelas que vem de uma família bem estruturada, amorosa e acolhedora e que as aceitam como são, tendem a desenvolver uma autoestima saudável desde muito cedo. Ao contrário disso, pessoas que não se sentem amadas e cuidadas por suas famílias, tendem a desenvolver não só problemas de baixa autoestima, como complexo de inferioridade e sentimentos de não pertencimento e inadequação, o que pode desencadear o abuso de substâncias como álcool e drogas, bem como desenvolver transtornos mentais moderados ou graves, como ansiedade, depressão ou ideação suicida.
Quando uma criança sofre abandono da mãe ou do pai ou quando se sente rejeitada, não amada e não aceita, ela tende a crescer se sentindo não merecedora de amor e a desenvolver relações tóxicas ou de abuso.
Se você teve a sorte de nascer em uma família amorosa e que lhe apoiou em ser quem você é, isso é realmente algo a ser celebrado e pelo qual experimentar gratidão. Mas se você sofreu rejeição e abuso de membros de sua família, que fizeram com que se sentisse mal por sem quem é, talvez seja necessário você “buscar sua turma”, encontrar pessoas com quem se sinta à vontade para se expressar livremente, com as quais se identifique e se sinta bem. Uma rede de afeto e apoio.
“O isolamento precoce começa sem que seja por nenhuma culpa da criança e é exacerbado pela incompreensão, pela crueldade da ignorância ou pela perversidade proposital do outro.”, afirma Clarissa Pinkola Éstes, autora do livro Mulheres que Correm com os Lobos. “Descobrir com certeza qual é sua verdadeira família psíquica proporciona as pessoas a vitalidade e a sensação de pertencer a um todo.”
É importante lembrar que família nem sempre é aquela com quem temos laços de sangue, mas sim as pessoas por quem nutrimos afeto, amor e respeito mútuos.
Na história do Patinho Feio, que trata do arquétipo do “ser incomum”, a mãe pata rejeita seu filhote por ele ser diferente dos outros e, por isso, ele está sempre sofrendo críticas e agressões. No livro Mulheres que Correm com os Lobos, a autora nos dá uma análise completa e profunda de todos os elementos que aparecem na história e salienta que o arquétipo do órfão ou o tema do proscrito sempre surgem em contos de fada. Os contos de fada têm como objetivo apresentar uma verdade fundamental para o nosso desenvolvimento psíquico e emocional, utilizando-se de metáforas e arquétipos que se comunicam diretamente com o nosso inconsciente.
Ao analisar o conto do Patinho Feio, sob o conhecimento da psicologia junguiana, Clarissa demonstra que, quando a cultura define o que é aceitável, desejável ou admirável, sob qualquer aspecto, se criam normas com o objetivo de regular os corpos e o comportamento das pessoas para caberem em um padrão, de modo que todas elas estarão sob avaliação e julgamento.
Esse processo pode afetar aspectos íntimos e pessoais, mas também externos e culturais, num modo de retroalimentação.
Vamos tomar como base uma criança que quando nasce recebe toda uma definição a partir de modelos pré-determinados de existência, expressão e escolhas e se torna o receptáculo de muitas expectativas das pessoas adultas sobre seu comportamento e desempenho social. Se essa criança desde cedo manifestar aspectos de diferenciação tanto destes modelos quanto das expectativas projetadas, ela terá grande chance de sofrer rejeição.
Em um primeiro momento, ela será bombardeada por todo tipo de críticas em reiteradas tentativas de padronizá-la e encaixá-la nos gabaritos, o que Clarissa nomeia de uma espécie de “cirurgia psíquica” que tem como objetivo enquadrar a criança a todo custo. Isso tem um efeito devastador sobre seu senso de identidade e ela pode experimentar um sentimento de desolação e solidão muito profundos.
Crianças LGBTQI tendem a sofrer muito mais com a rejeição dos pais e da comunidade do que outras crianças, sendo que as crianças Intersexuais são as que sofrem violência logo que nascem, quando o pai e a mãe, junto com o médico, decidem pela cirurgia e terapia de reposição hormonal a partir das características que estão mais em evidência ou por sua preferência.
Segundo a organização de defesa de direitos humanos Human Rights Watch para a BBC: “essas cirurgias podem levar a problemas como incontinência urinária, perda de sensação e função sexual, trauma psicológico e transtorno de estresse pós-traumático, e necessidade de terapia de reposição hormonal pelo resto da vida. Outro risco seria o de modificar os genitais da criança para serem mais compatíveis com aparência masculina ou feminina e, quando crescer, ela não se identificar com aquele gênero.”
Crianças transgêneras podem ser obrigadas a se comportar de acordo com os estereótipos associados ao gênero que lhe foi designado ao nascerem até a adolescência ou começo da idade adulta, o que gera muito sofrimento.
“Mal-entendidos sobre crianças transgêneros indicam que muitas ainda não recebem o apoio que merecem e as consequências podem ser trágicas. Felizmente, sabemos mais do que nunca que essas crianças precisam crescer seguras e saudáveis. Nos Estados Unidos e em todo o mundo, as políticas e as atitudes estão mudando para melhor apoiar as crianças transgêneros”, diz a Academia Americana de Pediatria (AAP) em um documento intitulado Apoio e Cuidado para Crianças Transgênero.
Já as crianças gays e lésbicas tendem a encontrar o preconceito em seus próprios lares, por seus pais e mães projetarem para elas o padrão de sexualidade e afetividade heteronormativa, desejando que sigam o modelo de família tradicional.
“Toda criança, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero real ou percebida, tem direito a uma infância segura, saudável e livre de discriminação. O mesmo princípio aplica-se a todas as crianças, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero de seus pais.” Diz o documento da Unicef “Eliminando a discriminação contra crianças e pais baseada em orientação sexual e/ou identidade de gênero”.
O fato é que, se no decorrer da vida essa pessoa for encontrando outros modelos, pessoas com quem se identifica, figuras nas quais se sente representada, um grupo ao qual pertence e uma rede de apoio e se insistir em afirmar sua identidade, passando a aplicar, como diz Clarissa “uma força moderada e prática para ser ela mesma”, pode se tornar capaz de influenciar a comunidade e ir alterando a consciência cultural coletiva.
Temos muitos exemplos disso na história e, com o advento da Internet e democratização do acesso à informação, isso certamente se multiplicou e tem crescido em progressão geométrica.
Mas sabemos que é preciso muita força para isso, porque significa “matar um leão por dia” para se afirmar diferente em um mundo que ainda criminaliza, deslegitima, violenta e até mesmo mata quem não se encaixa no padrão cisnormativo e heteronormativo.
Temos muito que avançar e, por isso nós temos de proteger as crianças LGBTIQA+, educar a sociedade a respeitá-las e celebrar e apoiar as pessoas que estão a frente da luta pelo direito e liberdade de sermos quem somos.
Não desista, siga as pistas, busque sua turma, encontre sua família. Ela é imensa! Nos vemos por aqui. Abraços de elevar!
Outras fontes: BBC, Abril e Unicef